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    Chris Hedges

    Jornalista vencedor do Pulitzer Prize (maior prêmio do jornalismo nos EUA), foi correspondente estrangeiro do New York Times, trabalhou para o The Dallas Morning News, The Christian Science Monitor e NPR.

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    A saga Trump-Rússia e a espiral de morte do jornalismo estadunidense

    As mídias servem a uma faixa demográfica específica o que ela já acredita – mesmo quando for não-verificado ou falso

    De-Prensa - De-Pressed (Foto: Mr. Fish)

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    Originalmente publicado no Substack do autor em 25.02.23

    Traduzido e adaptado por Rubens Turkienicz para o Brasil 247.

    Repórteres cometem erros. Esta é a natureza do ofício. Sempre há algumas estória que nós gostaríamos de ter reportado com mais cuidado. Escrever com um prazo-limite de apenas algumas poucas horas antes de publicar é uma arte imperfeita. Porém, quando ocorrem erros, eles devem ser reconhecidos e publicizados. Enconbrí-los, fazer de conta que estes não ocorreram, destrói a nossa credibilidade. Uma vez que esta credibilidade se vai, a imprensa se torna nada mais do que uma câmara de eco para uma demografia seleta. Infelizmente, este é o modelo que define agora as mídias comerciais.

     A falha em reportar acuradamente a saga Trump-Rússia durante os quatro anos da presidência Trump é suficientemente má. O que é pior, as principais organizações de mídias, as quais produziram milhares de estórias e reportagens que eram falsas, se recusam a engajar-se num post-mortem sério. A falha sistemática foi tão flagrante e tão difundida que joga uma sombra muito problemática sobre a imprensa. Como é que CNN, ABC, NBC, CBS, MSNBC, The Washington Post, The New York Times a Mother Jones admitem que, durante quatro anos, eles reportaram fofocas lascivas e não-verificadas como fatos? Como eles justificam aos seus espectadores e leitores que as regras mais básicas do jornalismo foram ignoradas, para participar numa caça às bruxas, um novo e virulento Mccarthismo? Como eles explicam ao público que o seu ódio contra Trump os levou a acusa-lo, durante anos, de atividades e crimes que ele não cometeu? Como eles justificam a sua atual falta de transparência e desonestidade? Esta não é uma confissão bonita, por isso ela não ocorrerá. As mídias estadunidenses têm a credibilidade mais baixa – 26 porcento – dentre 46 nações, segundo um relatório de 2022 do Reuters Institute for the Study of Journalism [Instituto Reuters para o Estudo do Jornalismo]. E com boa razão.

     O modelo comercial de jornalismo mudou desde quando eu comecei a trabalhar como repórter, cobrindo conflitos na América Central no início dos anos de 1980. Naquela época, havia alguns veículos das grandes mídias que buscavam alcançar um público amplo. Eu não quero romantizar a velha imprensa. Aqueles que reportavam estórias que desafiavam a narrativa dominante eram alvos, não só do governo dos EUA, mas também das hierarquias dentro das organizações noticiosas como o The New York Times. Ray Bonner, por exemplo, foi repreendido pelos editores do The New York times quando ele expôs flagrantes violações de direitos humanos cometidas pelo governo de El Salvador – a quem o governo Regan financiava e armava. Ele pediu demissão logo depois de ser transferido para um trabalho de beco-sem-saída na editoria de finanças. Sydney Schanberg ganhou um Prêmio Pulitzer pela sua reportagem sobre o Khmer Rouge no Cambodia, que serviu como base para o filme “The Killing Fields”. Subsequentemente, ele foi nomeado como editor metropolitano no The New York Times, onde ele designava repórteres para cobrir os em-casa, os pobres e aqueles que foram desalojados das suas casas e apartamentos pelos desenvolvedores imobiliários de Manhattan. Schanberg me contou que o Diretor Executivo do jornal, Abe Rosenthal, se referia a ele zombeteiramente como o seu “comunista residente”. Ele cancelou a coluna de duas vezes por semana de Schanberg e o forço a sair do jornal. Eu ví a minha carreira no jornal ser encerrada quando eu critiquei publicamente a invasão do Iraque. As campanhas de matanças de carreiras contra aqueles que reportavam sobre estórias controversas, ou expressavam opiniões controversas, não passaram desapercebidas dos outros repórteres que, para se protegerem, praticam a autocensura.

     Porém, as velhas mídias, porque estas buscavam alcançar um público amplo, reportaram sobre eventos e questões que não agradavam a todos os seus leitores. Com certeza, eles deixavam muito de fora. Eles davam credibilidade demais ao oficialismo do governo, mas, como Schanberg me countou, o velho modelo de noticiário indiscutivelmente não deixava “o pântano ficar mais profundo ao deixá-lo encher mais”.

     O advento das mídias digitais e a compartimentalização do público em demografias antagonistas destruiu o modelo tradicional do jornalismo comercial. Devastadas pela perda de rendas de publicidade e um declínio agudo de audiência e leitores, as mídias comerciais têm um interesse adquirido em servir àqueles que restam. Segundo os levantamentos internos revelaram, os aproximadamente 3,5 milhões de novos assinantes digitais do The New York Times adquiridos durante a presidência de Trump, eram esmagadoramente anti-Trump. Um círculo de feedback começou, no qual o jornal alimentava os seus assinantes digitais com aquilo que estes queriam ouvir. Resulta que os assinantes digitais também têm a pele muito fina.

     “Se o jornal reportasse algo que pudesse ser interpretado como um apoio a Trump, ou não fosse suficientemente crítico de Trump”, me contou recentemente  Jeff Gerth, um jornalista investigativo que passou muitos anos no The New York Times, algumas vezes eles “cancelavam as suas assinaturas e iam às mídias sociais para reclamar sobre isto”.

     Dar aos assinantes aquilo que eles querem faz sentido comercialmente. No entanto, isto não é jornalismo.

     As organizações noticiosas, cujo futuro é digital, ao mesmo tempo, encheram as suas redações com aqueles que são bons em tecnologia e são capazes de atrair seguidores nas mídias sociais – mesmo se carecem de habilidades de repórteres. A Chefe do bureau do The New York Times em Baghdad, Margaret Coker, foi demitida pelos editores do jornal em 2018, depois que a gerência alegou que ela era responsável pelo seu repórter-estrela sobre terrorismo, Rukmini Callimachi, ter sido barrado de reingressar no Iraque – uma acusação que Coker negava consistentemente. No entanto, era bem sabido por muitos no jornal, que Coker registrou várias reclamações sobre o trabalho de Callimachi e considerava Callimachi com inconfiável. Mais tarde, o jornal teve que retratar um podcast altamente aclamado de 12 partes – “Caliphate” – apresentado por Callimachi em 2028, porque se baseava no testemunho de um impostor. “Caliphate representa o The New York Times moderno”, disse Sam Dolnick, um editor assistente-gerente, quando anunciou o lançamento do podcast. A declaração se provou ser verdadeira, apesar que, de alguma maneira, Dolnick provavelmente não a antecipou.

     Gerth – um repórter investigativo vencedor do Prêmio Pulitzer que trabalhou no The New York Times de 1976 até 2005 – passou os últimos dois anos escrevendo com um olhar exaustivo sobre a falha sistêmica da imprensa durante a estória Trump-Rússia, sendo o autor de uma série de 4 partes e 24.000 palavras que foi publicada pelo Columbia Journalism Review. Esta é uma leitura importante, mesmo que depressiva. As organizações de notícias apreendiam qualquer estória, não importando quão não verificadas, para desacreditar Trump e ignoraram rotineiramente as reportagens que levantavam dúvidas sobre os rumores que eles apresentavam como fatos. Vocês podem ver a minha entrevista com Gerth aqui.  

     Em janeiro de 2018, por exemplo, o The New York Times ignorou um documento publicamente disponível mostrando que o investigador-chefe do FBI, após um inquérito de 10 meses, não encontrou evidências de conluio entre Trump e Moscou. A mentira da omissão foi combinada com apoios em fontes que vendiam ficções planejadas para servir aos que odiavam Trump, bem como uma falha em entrevistar os que estavam sendo acusados de colaborar com a Rússia.

     O Washington Post e a NPR (National Public Radio / Radio Publica Nacional dos EUA) reportaram, incorretamente, que Trump havia enfraquecido a posição do Partido Republicano sobre a Ucrânia na plataforma do partido porque ele se opôs à linguagem conclamando por armar o estado ucraniano com as chamadas “armas letais defensivas” – uma posição idêntica àquela do seu antecessor presidente Barak Obama. Estes veículos ignoraram o apoio da plataforma às sanções contra a Rússia, bem como a sua conclamação à “assistência apropriada para as forças armadas da Ucrânia e a maior coordenação com o planejamento de defesa da OTAN”. As organizações de notícias amplificaram esta acusação. Numa coluna no The New York Times que chamou Trump de “candidato siberiano” [alusão ao filme], Paul Krugman escreveu que a plataforma foi “aguada até a brandura” pelo presidente republicano. Jeffrey Goldberg, editor da revista The Atlantic, descreveu Trump como um “agente de facto” de Vladimir Putin. Aqueles que tentaram denunciar esta reportagem falsa, incluindo a jornalista russo-estadunidense Masha Gessen, foram ignorados.

     Após a primeira reunião do presidente Trump com Putin, ele foi atacado como se a própria reunião fosse uma prova de que ele era um fantoche russo. Depois, o colunista do The New York Times Roger Cohen escreveu sobre o “nojento espetáculo do presidente estadunidense reverenciando a Vladimir Putin em Helsinki”. Rachel Maddow, a apresentadora mais popular da MSNBC, disse que a reunião entre Trump e Putin validava a sua cobertura das alegações sobre Trump-Rússia “mais do que qualquer outro na imprensa nacional” e implicava fortemente – e a conta do seu show no Twitter a sua página no YouTube declararam explicitamente – que os estadunidenses agora estavam “entrando em conflito com o pior cenário possível de que o presidente dos EUA está comprometido com uma potência estrangeira hostil”.

     Gerth assinala que a reportagem anti-Trump se escondeu por trás do muro das fontes anônimas, frequentemente identificadas como “pessoas (ou pessoa) familiares com” – o The New York Times usou isto mais de milhares de vezes em estórias envolvendo Trump e a Rússia, entre outubro de 2016 e o fim da sua presidência, como descobriu Gerth. Qualquer rumor ou calúnia era incluída no ciclo de notícias com as fontes frequentemente não-identificadas e a informação não sendo verificada.

     Logo tomou forma uma rotina na saga Trump-Rússia. “Primeiro, uma agência federal como a CIA ou o FBI fazia um informe secreto para o Congresso”, escreve Gerth. “Depois, os Democratas ou os Republicanos vazam seletivamente trechos deste. Ao final, a estória é publicada, usando uma atribuição vaga”. Estas matérias de informações escolhidas a dedo destorciam muito as conclusões dos informes.

     As reportagens de que Trump era um ativo russo começaram com o chamado dossiê Steele, financiados inicialmente por oponentes republicanos de Trump e depois pela campanha eleitoral de Hillary Clinton. As acusações no dossier – que incluíam reportagens de Trump recebendo um “golden shower” de mulheres prostitutas num quarto de hotel em Moscou e alegam que Trump e o Kremlin tinham laços remontando a cinco anos – foram desacreditadas pelo FBI.

     “Aparecendo na Fox News, Bobo Woodward chamou o dossier de um ‘documento-lixo’ que ‘jamais deveria ter feito parte de um informe de inteligência”, escreve Gerth na sua reportagem. “Mais tarde, ele me contou que o Washington post não estava interessado nesta dura crítica do dossier. Após as suas declarações à Fox, Woodward disse que ele ‘contatou as pessoas que cobriram isto’ no jornal, identificando-os apenas genericamente como ‘repórteres’, para explicar por que ele foi tão crítico. Perguntado como eles reagiram, Woodward disse: ‘Honestamente, havia uma falta de curiosidade da parte das pessoas no Post sobre o que havia dito, por que eu havia dito isto, e eu aceitei isso e não quis forçá-lo sobre qualquer um’”.

     Outros repórteres que expuseram as fabricações – Glen Greenwald no Intercept, Matt Taibbi no Rolling Stone e Aaron Mate no The Nation – entraram em conflito com as suas organizações de notícias e agora trabalham como jornalistas independentes.

     O The New York Times e o Washington post compartilharam Prêmios Pulitzer em 2019 pelas suas reportagens sobre “Interferências russas nas eleições presidenciais de 2016 [nos EUA] e a sua conexão com a campanha eleitoral de Trump, a equipe de transição do presidente-eleito e o seu governo.”

     O silêncio das organizações de notícias que perpetuaram esta fraude por anos é sinistro. Isto cimenta no lugar um novo modelo das mídias, um modelo sem credibilidade, nem responsabilização. Os poucos repórteres que responderam à matéria investigativa de Gerth – como David Corn, no Mother Jones – duplicaram as velhas mentiras, como se a montanha de evidências desacreditando as suas reportagens, a maior parte das quais vindas do FBI e do Relatório Mueller, não existissem.

     Uma vez que um fato se torna intercambiável com uma opinião, uma vez que a verdade se torna irrelevante, uma vez que se diz às pessoas aquilo que elas querem ouvir, o jornalismo deixa de ser jornalismo e se torna propaganda.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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